O feminino na obra Dias e dias de Ana Miranda

Ana Miranda é uma escritora brasileira conhecida e premiada por seus romances históricos. Através de pesquisas em que teve acesso a cartas, documentos pessoais e fontes diversas, pertencentes a notáveis figuras do mundo poético-literário, a autora constrói um passado ficcional com traços muito vivos do passado real, remontando não só a trajetória biográfica de seus personagens, como também o cotidiano e o imaginário da época em que os fatos ocorrem.

Um dos pontos fortes da escritora é sua capacidade de apreender as minúcias que fazem parte do dia-a-dia das pessoas e torná-las aparentes e significativas. Sua escrita indica uma fina sensibilidade, tanto na leveza das palavras como na descrição dos sentimentos humanos.

Através do olhar de Ana Miranda é que se pretende perceber a presença das mulheres durante o século XIX. Na obra em questão, as personagens femininas são predominantes e nos dão acesso a uma visão diversificada do que significava ser mulher na época.
A sociedade passa por diversas transformações através do decorrer dos anos. Se hoje discutimos temas relacionados a gênero, cultura, aspectos sociais, é porque tais transformações nos permitiram o acesso a novas formulações do pensamento. Tratar da construção das mulheres é sempre um tema interessante, posto que as variações de comportamento e realidade sofreram mudanças relevantes que podem ser nitidamente percebidas ao longo das décadas.

As mudanças que ocorrem nas concepções da sociedade agem como em um todo e desencadeiam outras transformações em diversos setores da mesma. Podem ser percebidas no âmbito social, político e econômico.
Ana Miranda, autora de Dias e Dias
Longe dos clichês feministas, que muitas vezes enxergam as mulheres como sendo vítimas das imposições masculinas, o que se quer demonstrar no presente trabalho é como as mulheres constroem a sua própria realidade, como elas se inserem no mundo, não como meras realizadoras do papel que lhes foi dado, mas como também criadoras desse papel.

O comportamento feminino não pode ser analisado como ação condicionada pelo comportamento masculino. Tanto os homens como as mulheres constituem-se indivíduos que desempenham papéis na sociedade, sendo, portanto, ambos responsáveis pela construção das concepções do mundo em que vivem.

Cabe aqui perceber as diferenças existentes, não só dos homens em relação às mulheres, mas aquelas que passeiam entre as próprias mulheres, posto que os códigos de conduta variem de acordo com a faixa etária, a posição social, os ideais almejados etc.
O que molda o comportamento de uma categoria na sociedade são os próprios princípios que fazem parte do imaginário que a circunda. No Brasil, desde a sua colonização, os princípios do cristianismo católico foram fatores de grande relevância para a elaboração dos códigos sociais de ambos os sexos. De acordo com tais regras, as mulheres constavam como seres mais fracos, que necessitavam de quem as governasse, no caso, os homens.

Seguindo essa cartilha, formou-se uma sociedade cuja moralidade estava ligada à pureza, ao recato, ao comedimento. Cultuava-se a idoneidade do corpo e do espírito, abominando a idéia de pecado. Sendo assim, o ideal de homem e de mulher a ser alcançado era o modelo de cristão, tornando as outras formas de conduta indesejáveis por serem imorais.

Recorrendo a Gilberto Freyre, pode-se citar também a formação da sociedade patriarcal no Brasil, que designou para as mulheres uma vida essencialmente doméstica, sob o culto ao feminino. Culto esse que, segundo Freyre, era uma forma de afirmação da virilidade masculina. Nessa sociedade, havia intensa necessidade de diferenciação entre os sexos, portanto, daí a delimitação de ações tanto para uma como outra categoria.

Assim, ser homem ou mulher requeria atitudes específicas, que eram rigorosamente seguidas, através do vestuário, que deveria distinguir bem os sexos, e das funções realizadas tanto na família como na sociedade.

Devido a princípios que nos chegaram desde o cristianismo mais antigo, a mulher precisava ser símbolo de pureza, estando sempre resguardada do pecado. E os homens possuíam uma permissividade maior, pois sua vida era mais urbana e eles precisavam zelar pela pureza das mulheres. (MACEDO,2002).

A obra “Dias e dias” de Ana Miranda, está situada no século XIX, mais especificamente a partir do ano de 1936, que é quando os fatos que desencadeiam o enredo ocorrem. Passa-se na cidade de Caxias, ainda uma vila, na época, e tem como protagonista a sonhadora Feliciana, que, apaixonada pelo poeta Gonçalves Dias, personagem real, dá início a uma sucessão de momentos de desejo e esperança, mesclados à desilusão provocada pela sua realidade de moça simples do interior.

Durante o século XIX, no Brasil, apesar das mudanças nos comportamentos e de já se caminhar para um momento de maior permissividade, ainda os princípios religiosos faziam parte do cotidiano das pessoas. É preciso ressaltar que a sociedade brasileira, apesar da forte tradição cristã, era e é uma mescla em que convivem tanto uma moral castradora quanto a promiscuidade, pois encontra-se diversas justificativas para a quebra das regras.Isso decorre também da formação religiosa sincrética do Brasil, na qual o catolicismo se viu impregnado de diversas crenças e ritos diferentes dos seus.

De acordo com Foucault, no século XIX o modelo de moral vitoriana, pertencente à chamada burguesia, emerge como identidade dessa classe. Esse modelo visa a um ideal de vida de recato, valorização dos ditos bons costumes e austeridade. Dessa forma, inicialmente adotados pela burguesia, aos poucos esses princípios foram disseminados pelo restante da sociedade.

Parece que, por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele nos sujeitaríamos ainda hoje [...] Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana, até as noites monótonas da burguesia vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. (FOUCAULT,2007,P.9)

Desse encerramento de tudo que pertence à sexualidade, é que nascem os hábitos relacionados ao auto-controle, aos eufemismos, ao trato do sexo e do comportamento sexual como tabus.
Ana Amélia
Em relação ao comportamento feminino, durante o século XIX, uma outra mudança pode ser notada em relação aos séculos anteriores. Trata-se do trabalho exercido pela mulher, não só dentro da própria casa, como fora dela. Segundo Freyre, a mulher da sociedade patriarcal vivia na preguiça, cercada de escravas que desempenhavam as menores tarefas, acumulando gordura por não terem o que fazer. Já as mulheres que haviam sido tocadas pela moral burguesa, eram trabalhadeiras, ativas. E isso se refletiu até nos ideais de beleza.

Margareth Rago também trata dessas mudanças de comportamento:
Frágil e soberana, abnegada e vigilante, um novo modelo normativo de mulher, elaborado desde meados do século XIX, prega novas normas de comportamento e de etiqueta, inicialmente às moças das famílias mais abastadas e paulatinamente às das classes trabalhadoras, exaltando as virtudes burguesas da laboriosidade, da castidade e do esforço individual. (RAGO,1997,p.62)
Assim, surgiu a mulher ativa, que já não depende sempre das escravas para cuidar do Lar, que pode ter acesso à educação básica, a fim de desempenhar melhor suas funções, ganhando dessa forma, maior independência.

É nesse quadro em que se encontram as principais personagens do sexo feminino que compõem a narrativa: Feliciana, Natalícia, Maria Luíza, Ana Amélia e Olímpia Coriolana. A partir dessas duas realidades, Ana Miranda pinta os contrastes que fazem parte daquela sociedade e que serão pontos marcantes durante toda a leitura do livro. A vida no interior estava mais arraigada ao modo de vida patriarcal, enquanto que a vida nas capitais já começava a adotar os ideais de vida burguesa, importados principalmente da França.

A vida de Feliciana e Natalícia é uma vida doméstica. Natalícia, por ser mais velha, é a mulher que cuida da casa do pai de Feliciana, com quem mantém um estranho concubinato, posto que seja irmã da esposa falecida do mesmo.

Natalícia é uma típica mulher do interior. Vive afundada nos afazeres do cotidiano e se esforça para alcançar com perfeição o estereótipo de mulher que lhe foi ensinado. Para ela, ser invisível constitui uma qualidade. Havia um modelo de dona-de-casa a ser desempenhado. Era uma mulher que cuidava do lar com apreço, que não se mostrava, vivia como uma sombra, cuidando para que tudo acontecesse corretamente. Era imbuída também em zelar pelos bons costumes, como se percebe no trecho:

[...] Foi Maria Luíza quem me mandou um romance quando aprendi a ler, mas Natalícia pôs fim no livro antes que eu abrisse a primeira página, porque a leitura de romances deixava as moças doentes, encorajava a imoralidade, os romances eram silenciosos instrutores na arte da intriga, disse Natalícia[...] (MIRANDA,2002, p. 25)

As preocupações de Natalícia estavam em ser uma boa dona-de-casa, pois essa era a aspiração das mulheres de sua época e de seu lugar social. Fora ensinada dessa maneira, portanto, esforçava-se também para transmitir o zelo pelos afazeres domésticos e os bons costumes a Feliciana, de quem cuidava. Por esse viés, Natalícia representa uma continuidade, a preservação dos valores de sua geração.

Já Feliciana sentia dentro de si um desejo de ir além, de soltar-se, de viver. Era como o sabiá engaiolado que tem sede de liberdade – imagem bem explorada pela autora. Era movida por impulsos românticos, era sensível ao que estava à sua volta e percebia que a vida que Natalícia construíra e queria legar a ela não a faria feliz:

A vida que me esperava era a mesma vida de Natalícia, eu olhava os seus dias e dias da sua vida e sentia vontade de me desviar daquilo, Natalícia trabalhava o dia inteiro, sem um minuto de preguiça nem de cansaço, cuidava que nada fosse água abaixo [...] Natalícia sempre se levantava para a ceia da meia-noite de papai, vinha do quarto sem um fio de cabelo fora do lugar [...] Deus que me livrasse de uma vida dessas, como podia eu não querer vida diferente? (MIRANDA, 2002, p.59)

Feliciana sonhava com um mundo diferente do seu e talvez por isso ela esteja sempre a fugir do comportamento que é esperado para a categoria a qual pertence. A primeira ruptura que ela demonstrou em sua vida foi quando recusou o pedido de casamento do professor Adelino - pedido que muito alegrava a seu pai. Sendo assim, acabou por não se casar nunca.

Um outro momento em que Feliciana foge ao padrão é quando se sente curiosa para saber o que é o amor carnal e dirige-se ao professor Adelino - a quem havia recusado, mas que era declaradamente apaixonado por ela - com o intuito de tão-somente vivenciar essa sensação desconhecida.A personagem construiu para si uma existência diferente da que sonhava e diferente daquilo que fora projetado para ela, mostrando assim que não estava mergulhada na imobilidade.

Em se tratando de Maria Luíza, observa-se as nítidas diferenças que permeiam sua vida e a de Feliciana. A vida na capital para as mulheres de famílias de renome era muito dissonante em relação à vida simples do interior. Maria Luíza mostra-se uma jovem instruída, rica e bem-colocada na sociedade. Dessa forma, possui certa independência, apesar de ser uma mulher casada. Sua posição social privilegiada é o que lhe proporciona essa permissividade.As mulheres como Maria Luíza e Ana Amélia, que pertenciam a um meio social elevado, tinham acesso à arte, à cultura, à educação, não estando mais totalmente presas às responsabilidades do lar.

Maria Luíza incorpora também o papel de esposa. Não da dona-de-casa, como Natalícia, mas da esposa jovem e fresca, dedicada ao esposo. Sua vida lhe satisfaz, não lhe faltando amor nem os elementos que preenchem o espírito. Assim, é a personagem mais feliz do livro, cujo equilíbrio entre o existencial e o material foi encontrado.

Ana Amélia pertence à mesma classe de Maria Luíza, todavia, o desenrolar de sua vida passa por momentos de intensa insatisfação. Cortejada pelo poeta Gonçalves Dias, acaba apaixonando-se pelo mesmo. Entretanto, devido à posição social inferior do rapaz, a família lhe nega a permissão para o casamento. Frustrado, em vez de lutar pela mulher que diz amar, o poeta afasta-se definitivamente da mesma.

Ana Amélia desejaria quebrar as regras e casar-se com Antonio, sendo desapontada por ele mesmo. Retraída por seu orgulho, acaba por mergulhar numa vida em que não se sente feliz, casada com um outro homem, sem dinheiro, contrariando sua família. Falta-lhe paixão e falta-lhe também o conforto material ao qual estava habituada. "Disse Maria Luíza que Ana Amélia jamais perdoou àquele homem caído a seus pés, e nunca foi feliz com o marido, que Ana Amélia viveu sempre com o peito ralado de dor" (MIRANDA, 2002,p.197)

A atitude rebelde de Ana Amélia de casar-se com um homem socialmente inferior, mesmo sofrendo a falta de felicidade, assemelha-se à decisão de Feliciana de permanecer solitária. Ambas as personagens possuíam sonhos românticos que não foram possíveis de realizar e as duas acabam por desviar-se das expectativas da sociedade para com elas, desistindo assim da vida que haviam desejado ter.

Uma personagem bastante polêmica para a época, é a mulher que veio a ser a esposa do poeta Gonçalves Dias. Dissonante do perfil de esposa, Olímpia Coriolana casa-se tardiamente, não dispõe de grande beleza nem de virtudes como o recato, a honestidade, a singeleza – modelo de personalidade das mulheres aceitas no meio social.

Através de um comportamento de megera, a personagem é representa sob o estereótipo aplicado às mulheres de modos desviantes ou sensuais, o da “melindrosa” (RAGO,1997). Esse, define as moças frívolas, interesseiras, desprovidas de alta intelectualidade, que facilmente se ligavam aos homens a fim de satisfazer os próprios desejos.

Olímpia é infiel ao marido, mentirosa, exigente e ciumenta. Sua conduta causa escândalo e infelicidade ao poeta. É uma espécie de parasita para ele, dominando-o com seu mau gênio. Mostra-se fútil e desprovida de espiritualidade.

Antonio tinha medo de que um verso qualquer fosse motivo de quizília, de ciumeira, e mesmo tinha receio de receber cartas, dava todas a Olímpia Coriolana para que ela as abrisse e lesse antes dele, então Antonio foi tomado de um desejo imenso de ir embora, ruminou esse desejo tanto que decidiu ir para a Europa[...] (MIRANDA, 2002,p.194)

Ela representa o tipo de conduta abominável para uma mulher do século XIX. Sendo casada, deveria ser respeitada por isso, no entanto, sua infidelidade é nítida para todos. E dessa maneira ela é o símbolo da mulher de comportamento errôneo, indecente, o tipo de conduta que deveria ser evitada.

As mulheres do século XIX no Brasil, vivenciaram uma época de transição, em que foram galgando caminhos e descobrindo novos espaços a percorrer, construindo assim sua trajetória, firmando sua identidade, modificando sua maneira de estar no mundo. O mundo passava por mudanças, e as mulheres acompanharam-nas, elaborando assim, novos perfis e novas significações para o seu sexo.


Referências:
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber.18ªed.Rio de Janeiro : Edições Graal,2007.

FREYRE,Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano.15ªed.São Paulo: Global, 2004.

MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média.5ª ed.São Paulo: Contexto,2002.

MIRANDA, Dias e dias: romance.São Paulo : Companhia das Letras, 2002.

RAGO,Margareth. Do Cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1997.


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